quarta-feira, 29 de maio de 2019
NARCISO, A PAIXÃO POR SI MESMO
Narciso, um jovem de extrema beleza, era filho do deus-rio Cephisus e da ninfa Liriope. No entanto, apesar de atrair e despertar cobiça nas ninfas e donzelas, Narciso preferia viver só, pois não havia encontrado ninguém que julgasse merecer seu amor. E foi o seu desprezo pelos outros que o derrotou.
Quando Narciso nasceu, sua mãe consultou o adivinho Tirésias que lhe predisse que Narciso viveria muitos anos desde que nunca conhecesse a si mesmo. Narciso cresceu tornando-se cada vez mais belo e todas as moças e ninfas queriam seu amor, mas ele desprezava a todas. Certo dia, enquanto Narciso descansava sob as sombras do bosque, a ninfa Eco se apaixonou por ele. Porém tendo-a rejeitado, as ninfas jogaram-lhe uma maldição: - Que Narciso ame com a mesma intensidade, sem poder possuir a pessoa amada. Nêmesis, a divindade punidora, escutou e atendeu ao pedido.
Naquela região havia uma fonte límpida de águas cristalinas da qual ninguém havia se aproximado. Ao se inclinar para beber água da fonte, Narciso viu sua própria imagem refletida e encantou-se com sua visão. Fascinado, Narciso ficou a contemplar o lindo rosto, com aqueles belos olhos e a beleza dos lábios, apaixonou-se pela imagem sem saber que era a sua própria imagem refletida no espelho das águas.
Por várias vezes Narciso tentou alcançar aquela imagem dentro da água mas inutilmente; não conseguia reter com um abraço aquele ser encantador. Esgotado, Narciso deitou na relva e aos poucos seu corpo foi desaparecendo. No seu lugar, surgiu uma flor amarela com pétalas brancas no centro que passou a se chamar, Narciso.
Na cultura grega e em muitas outras, tudo o que excedia e estivesse acima dos limites e da medida (métron) acabava se transformando em algo assustador porque poderia levar à hybris, que é descomedimento e desequilíbrio. O excesso de beleza não era bem aceito pois somente aos deuses era permitido o exagero, e a excessiva beleza de Narciso desafiava a supremacia dos deuses.
O mito de narciso parece uma triste história infantil para ensinar às crianças a não serem egoístas, que pensem nos outros, que não sejam presunçosas, porém encerra uma verdade profunda e atual. Os mitos não são tolos, e por mais que tentássemos dizer que sabemos a moral da história, o mito de Narciso está presente em todos nós.
Narciso foi transformado numa flor e a ela são creditadas propriedades entorpecentes devido a substâncias químicas que exalam. Os Narcisos plantados nos túmulos simbolizavam a morte apenas como um sono, que floresceria na primavera. O narcisismo, que tem o seu nome derivado de Narciso, ambos derivam da palavra grega 'narke' (entorpecido, de onde provém a palavra narcótico). Assim, para os gregos, Narciso simbolizava a vaidade e a insensibilidade, pois Narciso era emocionalmente entorpecido às solicitações daqueles que se apaixonaram pela sua beleza.
O mito de Narciso leva ao tema da transitoriedade da beleza e dos laços que unem o narcisismo à inveja e à morte. O dilema do narcisismo é resumido naquele que está condenado a permanecer prisioneiro do mundo das sombras, do seu amor por si mesmo ou libertar-se através do autoconhecimento e da capacidade de conhecer os outros, mas o preço é a morte simbólica do ego, para que possa nascer novamente para um novo Eu superior, profundo e sagrado, que em si oculta.
Narciso morre porque olha só para si mesmo, esse é o perigo de quem dedica toda vida a satisfazer necessidades que não atendem ao verdadeiro anseio humano de se realizar. Eco morre porque só olha narciso, esse é o perigo de projetar no outro a nossa razão de viver. Narciso simboliza a capacidade de olharmos para nós mesmos; Eco simboliza a capacidade de olhar o outro. É o olhar em si que encontra o outro; é o olhar no outro que encontra a si mesmo.
Embora o narcisista pense apenas em si, nunca poderá conhecer a si mesmo se não tiver uma posição exterior para se ver como realmente é. Narciso é incapaz de ver o efeito que provoca nos outros; sabe que atrai aduladores e admiradores e Eco transforma-se no espelho do negligente Narciso. Ele se julga intocável; ela alimenta o desejo de estar em seus braços.
Eco é a repetição das ideias conhecidas sempre hostil ao novo. Ao se apaixonar por Narciso, Eco repetiu... repetiu... e foi perdendo força, impedida de viver e amar. Eco se refugiou nas grutas, assim como a mente que teima em repetir perdendo quotas do que é novo em suas vidas. O presente é a única instância onde a vida se processa; o futuro ainda não existe e o passado é repetição, um eco. O presente é a medida do novo e trazer Eco para o presente é fazê-lo mais velho, embora ainda pareça novo.
Com seu egoismo implacável, Narciso pensa só em si próprio e Eco só pensa em Narciso, então sua autoestima permanece frágil até a morte. Ele não se identifica com os outros e assim transforma as vozes na sua própria voz; ela não tem voz própria, está condenada à repetição da imitação. Enquanto ela agarra-se ao objeto amado, ele mantem-se à distancia. Tirésias sabia que para sobrevivermos temos de superar o narcisismo, pois temos de aceitar que somos transitórios e mortais, e só assim seremos capazes de nos transformar, nossa auto estima estará segura e teremos a beleza interior.
Quando Narciso vê o próprio reflexo, nos remete a "reflectere", de "re" novamente e "flectere" curvar-se, ou seja, um retorno que se faz curvando para o passado. Reflexão não é apenas um ato de pensar, mas é uma atitude de deter-se para procurar lembrar-se de algo que já foi visto antes e confrontar com o presente. Reflexos e sombras nos espelham de alguma maneira. Alguns povos ainda hoje não admitem que sua imagem seja refletida em água, espelho e fotografia; diz-se que a alma poderia ficar retida no reflexo permanecendo disponível às forças do mal.
A sombra representa o que não conhecemos de nós mesmos mas que podemos ainda conhecer, tal como as nossas potencialidades que ainda não desenvolvemos. Também faz parte da nossa sombra o que mais detestamos em nós mesmos, e por isso tentamos esquecer ou reprimir de alguma forma. Para negar o que não gostamos em nós mesmos, projetamos nos outros. Quando refletimos no Narciso que vive em nós, nos confrontamos com algo sombrio, o medo da sombra, do diferente, do desconhecido, do que nos incomoda e que não queremos ver no outro.
Nos sentimos mais confortáveis quando somos admirados e reconhecidos, e precisamos disso para saber o nosso valor, de que somos importantes para alguém. Assim continuamos procurando e nos apaixonando por nossos reflexos, por nossos semelhantes e iguais, enquanto tentamos afastar todos aqueles que que não tem a nossa cor, os nossos costumes, nossa raça, nosso nível cultural ou poder econômico, e convicções politicas e religiosas. E enquanto vamos em busca dos nossos reflexos, ampliamos mais nossa sombra, entorpecemos nossos sentidos.
Para evoluir temos de refletir, aprendendo a lidar com as diferenças e conflitos. Como num espelho, ao interagirmos com o outro nos colocamos no lugar dele, sem perder nossa referencia. E o que mais nos fascina é a nossa imagem irreal, aquela que fazemos de nós mesmos. A pessoa fascinada parece estar em transe; o narcisista quer congelar a juventude e exorcizar a velhice. Idolatra o prazer e vive no espirito do encanto e da sedução.
O mito de Narciso pode servir de metáfora para muitos de nós, quando não conseguimos nos olhar com imparcialidade, e o nosso trabalho interior se torna um meio de projetar a vaidade humana na cantiga do eu sozinho: eu faço, eu sou, eu quero, eu posso. Narciso morreu embriagado pela própria beleza e encantamento, e os deuses o transformaram numa flor. A lição do mito é que o conhecimento só vinga se houver autoconhecimento, de potencialidades ou limitações, compartilhando o que sabe, eliminando vaidades que impede de aproveitar talentos e somá-los ao conhecimento dos demais. E assim escrever uma história de vida que reflita valores éticos, morais espirituais.
O conhecimento mal direcionado só alimenta o individualismo e a necessidade da ribalta. Quando nos deixamos levar pela excessiva vaidade e orgulho, tornamo-nos reféns de nossa auto imagem. Magnetizado por ela, passamos a usar nossa luz de forma mesquinha e presos nessa miragem, perdemos a capacidade de irradiar nossa luz, afastando-nos da essência, entusiasmamos pelo palco, pelo aplauso e pelo falso elogio. Somente a dura lição de cronos, o tempo, mostra-nos a verdade, muitas vezes, tardiamente.
Se Narciso se encontra com outro Narciso e um deles finge que ao outro admira, para sentir-se admirado, o outro pela mesma razão finge também e ambos acreditam na mentira. Para Narciso o olhar do outro, a voz do outro, o corpo é sempre o espelho em que ele a própria imagem mira. E se o outro é como ele outro Narciso, é espelho contra espelho: o olhar que mira reflete o que o admira num jogo multiplicado em que a mentira de Narciso a Narciso inventa o paraíso.
E se amam mentindo no fingimento que é necessidade e assim mais verdadeiro que a verdade. Mas exige o amor fingido, ser sincero o amor que como ele é fingimento. E fingem mais os dois com o mesmo esmero com mais e mais cuidado - e a mentira se torna desespero. Assim amam-se agora se odiando. O espelho embaçado, já que Narciso em Narciso não se mira: se torturam, se ferem, não se largam, que o inferno de Narciso, é ver que o admiravam de mentira...